terça-feira, 5 de junho de 2012

PASTORES DA JUSTIÇA


“Eu sou o bom Pastor.

O bom Pastor dá a sua vida

 pelas ovelhas.”

Jo. 10:11


            Paulo César Pereira


            Quando falamos sobre “pastores da justiça” partimos de alguns pressupostos. Primeiro, a questão de gênero: pastores e pastoras; depois, a relação entre movimento e instituição: tanto nos interessa o pastor (e a pastora) formalmente ordenados por uma instituição religiosa, quanto aquele que, sem nenhuma autorização institucional, exerce alguma forma de pastoreio de pessoas que inclui a dimensão da justiça (e a justiça sempre está presente onde estão presentes as pessoas); por último, cremos que a nossa reflexão pode ser útil mesmo para aqueles que não vivem nas nossas instituições cristãs, ou mesmo religiosas, mas que também lutam por pessoas e pela justiça.
            Em um breve passeio pelas páginas de nossas bíblias, percebemos com facilidade que o tema pastor e pastoreio está em relevo do início ao fim.
            Logo no início, vemos um pastor, Abel, sendo assassinado porque deu o melhor que tinha para Deus. Moisés pastoreou como uma segunda opção na sua vida. Era quase um passatempo. Um passatempo que ajudava a ganhar o pão de cada dia, mas que se tornou preparação para guiar imenso rebanho de pessoas. Jacó leva a marca do pastor que engana e que ao mesmo tempo também é enganado, mas lá no fundo, sabia como ninguém como cuidar de ovelhas. Davi é o arquétipo daqueles que deixam o pastorado para exercerem outra atividade, mas sempre serão pastores. Abandonam o cuidado formal de grupos, mas não conseguem deixar de cuidar de pessoas. Provisoriamente rei, mas sempre pastor/poeta a declarar: “O Senhor é o meu pastor e nada me faltará” (Sl. 23:1).
            O significado do pastorado começa a tomar outra dimensão numa noite escura nos campos de Belém, quando os seus pastores visitados pelos anjos também visitam o pequeno pastor numa simples manjedoura. Mais tarde, o próprio Jesus se identificará como “o bom pastor”, completando “o bom pastor é aquele que dá a vida pelas suas ovelhas” (Jo. 10:11).
            O pastor traz em si a marca da doação. A vida do pastor não pertence a ele mesmo. Além disso, o pastor é uma eterno nômade, um peregrino, um caminhante. Ele vai sempre aonde as ovelhas estão. É exatamente como diz Milton Nascimento[1] em uma de suas canções: “todo artista tem de ir aonde o povo está.” O pastor é esse artista mambembe, aquele que vai sempre e somente aonde o povo está.
            O pastor traz em sua mão o cajado da proteção. Para proteger a sua ovelha ele é capaz de arriscar a sua própria vida. Davi disse que matou um leão e um urso com as suas próprias mãos. Faz parte do nosso cuidado pastoral lutar contra leões e ursos para  proteger as ovelhas que talvez só tenham o pastor por elas.
            O pastor também é aquele que conhece as suas ovelhas e por elas é conhecido. Elas ouvem e seguem a sua voz. Ele é atento o suficiente para perceber quando uma única ovelha se afasta do rebanho. Se necessário, ele deixa as noventa e nove no aprisco e vai em busca da ovelha perdida, pois tem a consciência que também fomos ovelhas perdidas da casa de Israel.
            O pastor é e sempre será um defensor da vida. Defenderá sempre o direito dos mais fracos, de todos os espoliados.  Ele busca a justiça. E essa é a luta que já vem de há muito tempo, por profetas/pastores cristãos e não cristãos. Por exemplo, Hamurabi[2] foi nomeado Rei para fazer com que a justiça prevalecesse na terra, para destruir o mau e o perverso, para que o forte não oprimisse o fraco.
            Na literatura do antigo Egito já havia instruções ponderando que o Rei não deveria mostrar parcialidade contra o pobre ao selecionar candidatos a um cargo e ainda que o rico não fosse ganancioso pela propriedade de quem é pobre. O pastor precisa rejeitar o ensino dos gregos[3], que admitiam explorar os pobres até o extremo, ao ponto deles terem que se vender como escravos, tanto eles como as suas famílias, mas rejeitar também a posição de Israel[4], que igualmente escravizava os pobres. No ano sabático os libertava, para depois escravizá-los novamente.
            O que Deus ordena ao pastor é que denuncie os excessos, tanto de riqueza como de pobreza, pois foi assim que Jesus fez. Ele mesmo estabeleceu o movimento de maior importância no mundo romano que teve sua origem e desenvolvimento nas classes pobres e humildes. Jesus era um pobre e da pobreza não tentou sair. Por isso, penso que o nosso ministério deve ser com os pobres e entre os pobres. Viveremos “como tristes, mas sempre alegres, como pobres, mas enriquecendo a muitos, como nada tendo, mas tudo possuindo” (II Cor. 6:10).
            Um bom pastor é aquele que aprende a viver na marginalidade, a não viver assentado na roda dos poderosos, dos que comandam os destinos das instituições políticas e religiosas.
            Podemos nos inspirar em pessoas como Albert Schweitzer, pastor e filho de pastor. Doutorou-se em música, em teologia e em filosofia. Era reconhecido e reverenciado em toda a Europa. Mas, aos trinta anos, deixou tudo o que estava fazendo para ingressar na Escola de Medicina. Formou-se e foi trabalhar no interior da África, longe da civilização, onde a miséria e o sofrimento consumiam a todos. Certamente não fez isso para ficar rico e com certeza não ficou. O que lhe dava prazer era cuidar da vida, tinha uma profunda “reverência pela vida” [5]. Dizia que tudo que vive é sagrado e deve ser protegido e ainda que tudo que é vivo tem o desejo e o direito de viver. O reconhecimento veio apenas ao final da sua vida quando recebeu o premio Nobel da Paz.

            Van Gogh[6] também foi pastor e optou em ser pastor entre as pessoas pobres e sofridas. Desse período deixou preciosas obras como o “Vagão de terceira classe” e “Os comedores de batatas”, quadros até hoje apreciados e valorizados. Entendia que ser pastor era cuidar dos sentimentos e pensamentos das pessoas, pois é daí que surgem as nossas ações. Se envolveu tanto com os pobres, especialmente os operários, que doou tudo que possuía para eles, inclusive as próprias roupas. Por cometer tamanho pecado foi destituído do pastorado por seus superiores.
            Somos desafiados a viver uma ética de respeito total ao outro e de respeito total à vida.
            Ao visitar um Blog, me deparei com a seguinte pergunta: “O que é preciso para eu ser pastor?” Surpresa maior para mim foram as respostas:

1. Só precisa ser mentiroso e safado.
2. Ter cara de pau e não ter vontade de trabalhar. O dinheiro? Vem ao natural.
3. Você tá mal intencionado. To sentindo isso. Por que não se dedica a estudar para ser alguém na vida.
4. Deve saber a arte de enganar.
5. Ter ambição e vestir-se bem. É isso que tu queres ser? Mais um a ludibriar nosso povo infeliz?
6. É preciso apenas saber ler e escrever. O curso de três meses você pode pagar em cinco prestações.
7. Sei o que não pode ter: Vergonha na cara.
8. Ter uma boa lábia, o resto os fiéis te dão.
9. Ter um terno cafona, falar a palavra Jesus uma vez a cada três palavras ditas, depois é só montar uma franquia.
10. Advogado, Juiz ou Pastor, qual a profissão mais desonesta?

            É assim que o mundo está vendo os pastores. Temos o dever moral de sermos diferentes, pastores da justiça. Impressiona-me, entre os pastores oficialmente instituídos, como alguns se acham superpastores porque no Seminário passaram em Exegese. Se esquecem que durante o curso, em sua grande maioria, fizeram exegese de um único texto bíblico, são pastores de uma perícope só. Ora, de pastores e boas intenções o mundo está cheio. O que precisamos é de bons pastores. Mesmo entendendo que qualquer pessoa pode ser pastor da justiça, precisamos de pastores que ainda invistam tempo na leitura e estudo da bíblia, na oração, na contemplação e na visitação. Parecem coisas tão simples, mas podemos afirmar que são muito importantes, afinal “prudência e canja de galinha nunca fez mal a ninguém”.       Precisamos de pastores que ainda tenham a humildade e a grandeza de fazerem como Paulo e Barnabé, que rasgaram as suas roupas quando foram chamados de deuses. Essa é talvez a tentação cotidiana do pastorado eclesiástico. Em meio a um ambiente de amor e adoração, não é fácil lembrar que não somos os deuses e as deusas: somos apenas homens e mulheres, pastores e pastoras chamados para cuidar e apascentar as ovelhas do Senhor, parte de um só rebanho e cuidados por um só Pastor.

            Gostaria de pedir por empréstimo preciosas considerações do Pr. Benedito Gomes Bezerra[7] quando traça alguns paralelos sobre sacerdotes e profetas, numa bem elaborada mensagem baseada em Amós 7:10-17. Ressalta que Amasias é o modelo de pastor como sacerdote, enquanto Amós sem dúvida é um precioso modelo de pastor como profeta. Diz:
Temos muitos sacerdotes e poucos profetas na igreja de hoje. Mas Cristo nos chama para um ministério profético e não sacerdotal; O mundo precisa de profetas e não de sacerdotes.
A principal característica do modelo sacerdotal é a repetição. O sacerdote quer apenas manter o aparato religioso funcionando bem. O mais importante  para os sacerdotes é que os sacrifícios estejam sendo oferecidos, os dízimos estejam sendo entregues. É importante que o edifício religioso ande bem. É muito importante que o santuário do Rei não seja perturbado. Quanto ao povo, este pode ser apenas um detalhe.
            Tudo isso pode ser importante, mas não é prioridade para o profeta. O profeta não se preocupa com a repetição correta dos serviços religiosos, mas com a vida do povo, tudo está a serviço da vida.
No modelo sacerdotal as estruturas religiosas se tornam mais importante do que as pessoas. O sacerdote se torna então um funcionário da religião, já o profeta é um  porta -voz de Deus para o povo, sua palavra é sempre viva e não repetitiva. O profeta  não tem compromisso com os reis de plantão, com as estruturas de poder, mas com o Rei dos Reis que o chamou de suas ocupações de rotina.
            Outra característica do ministério sacerdotal é o lugar marcado para o culto. O sacerdote tem um forte apego ao lugar de culto. A casa de Deus é santa, por isso constroem casas bonitas e caras para o seu Deus. O profeta não tem apego a nenhum lugar de culto, porque ele é livre como livre é o seu Deus. Deus não escolhe sempre os mesmos lugares para falar com o seu povo, o mais importante é o povo e não o lugar.
            O sacerdote tem tempo certo para o exercício de seu ministério, o profeta não tem hora marcada. No sistema sacrificial, todos os dias e horas são rigidamente estabelecidos. O povo pode procurar os sacerdotes nessas horas “sagradas” da igreja. O pastor profeta não tem hora certa para exercer o ministério que Deus lhe deu.
            O sacerdote é de linhagem sacerdotal, herdou o seu ministério e o exercerá por toda a vida. O profeta foi surpreendido pelo chamado de Deus, não é profeta nem filho de profeta. Simplesmente foi chamado por Deus. Seu filho não será profeta por sucessão.

            Devemos ter a plena consciência que somos chamados para o ministério profético, pois somente o ministério profético não se conforma com a injustiça que reina no mundo.
            Como profetas, certamente teremos momentos de profundas crises, de inúmeras dúvidas e de muitas incertezas, mas sempre que nos depararmos com uma injustiça acontecendo, o nosso coração pulsará mais forte.
            Como pastores da justiça também teremos instantes de profunda solidão, como tão bem esclarecida por São João da Cruz[8] ao nos ensinar sobre a noite dos sentidos e a noite do espírito.Sentidos são as nossas janelas por onde temos a visão sobre o mundo. É comum, mesmo no relacionamento com Deus, permanecermos no campo dos sentidos.
Lembra que quando vivemos somente nos sentidos:

1.      Perdemos o gosto pelas coisas de Deus;
2.      Temos muita inquietação. Pensamos então que não estamos servindo a Deus e perdemos a alegria;
3.      Observamos com freqüência que a maneira antiga de fazer oração já não satisfaz mais.

Já na noite do espírito, somente a verdadeira presença de Deus vale a pena. Nela podemos nos surpreender e descobrir que:

1.      Manipulamos as pessoas ao invés de servi-las;
2.      Construímos o nosso próprio reino ao invés do Reino de Deus;
3.      A luz de Deus desmascara o nosso farisaísmo;
4.      Podemos enfim sofrer não pela ausência de Deus, mas pela sua presença; Não pelo silêncio de Deus, mas pelas suas palavras, pela sua voz.

Penso que, como pastores da justiça, não deveremos ser apenas ativistas, devemos agir, mas também trazer em nós os mistérios dessa espiritualidade.
O próprio São João da Cruz nos alerta que, quanto mais nos aproximamos de Deus, mais parece que vamos perdendo a fé. (“Deus meu, Deus meu, porque me desamparaste?”) [9] A própria Madre Teresa de Calcutá[10] era uma dúvida só, dizia que tinha a dúvida como sua companheira.
Tenho que esses e outros, como os irmãos da comunidade de Taizé (11), [11] sinalizam para nós uma viagem ao centro do espírito. É isso que também vejo no relato do Peregrino Russo[12] que faz uma viagem ao ”exterior” para então se encontrar com o interior da sua vida; O Pr. Martin Luther King[13] avança mais e nos propõe uma viagem ao coração do povo.
Percebemos então que quanto mais próximos estamos de Deus mais participamos do seu universo. Os nossos sentidos então são convidados para a grande festa do criador com a sua criação. São convidados para perceberem a vida ao nosso redor e então poder fazer as exclamações de dor, de saudade, de revolta, de alegria, de anúncio e também de denúncia. Poderemos, a partir disso, clamar e lutar por justiça.
Justiça para com a criação do Pai. Gritos de desolação e de tristeza como o do poeta menestrel Roberto Diamanso[14] que, ao ver a mata derrubada, assim exclama: “Xô patativa do gai de pau, tiraram a mata daqui, só resta a ti ir embora...mas o perigo chegou, liga na fonte laço no ninho, morre quem chegar primeiro.”
Poderemos também ser surpreendidos com os sentimentos de alegria e prazer pelas simples e pequenas coisas da vida. Sentimentos tão bem expressados por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira[15] na canção “Estrada do Canindé”: “Aí aí, que bom, que bom que bom que é, uma casa e uma cabocla e uma gente andando a pé...Mas o pobre vê na estrada o orvalho beijando a flor, vê de perto o galo campina que quando canta muda de cor.” Só quem anda a pé pelas estradas da vida tem o privilégio de desfrutar dessas simples mas belas coisas.
Ou ainda a voz serena, contundente e sempre profética de Zygmunt  Bauman[16] como quando afirma que o nosso planeta está cheio, não espacialmente, mas cheio de refugo humano.
Quando assumimos o nosso papel de pastores da justiça todos esses sentimentos estarão presentes e bem misturados em nossos corações. Devemos buscar o equilíbrio entre as nossas ações pastorais e os nossos exercícios espirituais. Dessa maneira, os nossos sentidos serão sempre convidados para a grande festa da vida.
Jung Mo Sung[17] diz que “o excesso de religiosidade certamente é um dos fatores da legitimação da opressão social.”
E ainda que:

Alguns afirmam que o pobre precisa sofrer para poder obter a salvação. Se assim for, os patrões injustos, os políticos corruptos, racistas, os insensíveis, estariam todos a serviço da vontade de Deus, essa então seria uma legitimação implícita. Enquanto isso os justos são acusados de ter pacto com o diabo. Os supostamente “tementes a Deus” são os mesmos que pactuam com a injustiça e morte, enquanto os que lutam pela vida e pela justiça são acusados de ateus e de ir contra a vontade Divina. Os que vivem da religião são exatamente os que não produzem diretamente o necessário à própria sobrevivência, são pastores, sacerdotes e monges. Então não é por acaso a antiga aliança entre os sacerdotes e os ricos e poderosos. Porventura um governante sustentará um sacerdote que afirme que Deus está contra o seu governo?

Na nossa sociedade pós-moderna a dignidade consiste não no fato de sermos pessoas, mas sim no pré-requisito de termos coisas. Então, não ter dinheiro significa quase sempre também não ter dignidade. Poderemos dizer que é a humanização tendo como base e fundamento o consumo. O Reino de Deus anunciado por Jesus era uma instituição também política, na qual a religião e a economia estavam presentes e umbilicalmente ligadas. Já nessa época a sociedade percebia que os bens são sempre limitados e que ninguém vive sem os bens necessários e ainda, que a pessoa rica é normalmente má. Já se dizia que riqueza herdada é riqueza roubada e que o acúmulo de riqueza é resultado da avareza. Então, é provável que, também por isso, os seguidores de Jesus eram chamados e desafiados para negar a si mesmos (Lc.9:23).”
            Como pastores da justiça precisamos sempre buscar entender o mundo que está ao nosso redor, percebendo a direção que ele está tomando. Por ex., Noam Chomsky[18], no seu livro “Ambições Imperiais” nos afirma que o mundo vive com medo, mas um medo que lhe foi induzido propositadamente para gerar um sentimento de insegurança. Isso deve nos convencer então que os acontecimentos humanos tomam os rumos que as pessoas decidem tomar, e que não devemos permitir que sejamos induzidos a um sentimento de conformismo e subordinação, pois, conforme analisa Zygmunt Bauman em seu livro “Vida para consumo: a transformação da pessoa em mercadoria”, com muito discernimento nos diz: “na sociedade de consumidores, ninguém pode se tornar sujeito sem primeiro virar mercadoria” (BAUMAN, 2008:20)[19]. Como pastores da justiça, jamais devemos ser ou jamais queiramos nos transformar nem em mercadores nem em mercadorias.

Se olharmos com os bons olhos do Padre José Comblin[20] poderemos, sem dúvida, afirmar que isso sim é que é verdadeiramente pecado, pois, para ele “pecado é o princípio de morte que está presente em toda a sociedade e que tende a corrompê-la”. Em outras palavras, pecado é o “fermento de morte”. 
Somos pastores da vida e não da morte. Acontece que às vezes estamos tão seguros da nossa ortodoxia, tão combatentes na nossa defesa da fé, que acabamos por ocultar completamente a mensagem de Jesus. Talvez estejamos demasiadamente estruturados, demasiadamente disciplinados que, de tempos em tempos, Deus faz surgir movimentos que rompem as cadeias das tradições e ressuscitam a autenticidade do evangelho, como é o bom exemplo dos franciscanos. A tradição que supostamente nos protege muitas vezes nos esmaga.
 Jesus rompeu com quase todas as estruturas vigentes em sua época, pois elas serviam como base para todo aquele sistema de dominação. Por ex.: Ainda segundo o festejado teólogo José Comblin[21],

Amar o inimigo não é assunto puramente individual. Amar o inimigo é introduzir a subversão e uma mudança radical em todas as formas históricas de ordem política, social, econômica, cultural, religiosas.Amar o inimigo é introduzir o princípio da insegurança: é aceitar que o inimigo exista e seja para tudo e todos uma ameaça permanente. Amar o inimigo é renunciar à segurança e viver a necessidade de ser contestado, discutido, posto em questão, de sofrer reivindicações, de ser invadido na área de sua tranqüilidade. A ordem social e pessoal se baseia na proteção e nas defesas contra os inimigos, na manutenção das barreiras que reprimem ou pelo menos contêm a atividade dos inimigos, tornando-os inexistentes ou pelo menos ineficazes.Jesus reconhece aos inimigos o direito de existir e, portanto, perturba a ordem e qualquer estabelecimento, Reconhece direitos ao inimigo e, portanto, ameaça os direitos dos amigos.

            Devemos todos compreender que não podemos buscar a justiça sem acreditar nas reais possibilidades de mudanças. Isso naturalmente poderá gerar em nós e nos outros companheiros de caminhada um sentimento de insegurança e medo. Mas não devemos nos desanimar, pois é esse o caminho que um dia nós escolhemos e é também o caminho para o qual fomos escolhidos e desafiados a andar nele.
Gostaria de terminar lembrando três contos do autor Cubano-Italiano Ítalo Calvino[22]:
No primeiro, ele nos fala de um país em que tudo era proibido, menos o jogo de bilharda. Todos passavam o dia jogando bilharda. As proibições tinham vindo paulatinamente, sempre por motivos “justificados”. Ninguém reclamava, todos se adaptavam. Um dia as autoridades resolveram tirar todas as proibições. Agora poderiam então fazer o que bem quisessem, mas todos continuaram a jogar bilharda. Resolveram então, as autoridades, proibir o jogo. O povo com isso fez uma revolução, matou todas a todos e voltaram tranquilamente a jogar bilharda.
Me parece que estamos tão acostumados ao nosso jogo de religiosidade, mesmo que benefício nenhum ele nos traga, que seremos capazes de matar ou morrer para continuarmos jogando sem o mínimo desejo que alguém venha nos perturbar com uma nova mensagem. Já existe liberdade para tantas outras coisas, mas claramente preferimos continuar tudo como antes.
No segundo relato, ele nos fala de uma cidade em que um homem foi condecorado com muitas medalhas por matar, durante uma guerra, muitos inimigos da nação, porém foi condenado à morte na forca porque num tempo de paz matou um inimigo pessoal da aldeia vizinha. Parece-me que, quando estamos à serviço do estado ou da instituição, podemos praticar todo tipo de maldade, inclusive matar a muitos, mas jamais seremos compreendidos se cometermos um pecado no campo pessoal. Ainda continuamos a enforcar a muitos, mesmo que sejam companheiros de caminhada.
Por fim, a história de uma cidade em que todos eram ladrões. À noite cada habitante saía, arrombava a casa do vizinho, voltava de madrugada carregado de coisas e encontrava a sua casa arrombada. Todos viviam em paz e sem prejuízo, pois um roubava o outro, e este um terceiro e assim por diante, até chegar o último que roubava o primeiro. O comércio só era praticado com trapaça, tanto por quem vendia como por quem comprava. O governo era uma associação de delinqüentes vivendo às custas dos súditos e estes por sua vez, só se preocupavam em fraudar o governo. Assim não havia nem ricos nem pobres.
Apareceu um homem honesto e ao invés de sair para roubar, preferia ficar em casa fumando charutos e lendo romances. Os ladrões viam a luz acesa e não entravam. Convenceram então ele a ter que sair de casa, pois a cada noite que não saía era uma família com fome no dia seguinte. Ele passou a sair, mas não ia roubar, pois era honesto. Saia, voltava de madrugada e encontrava a casa arrombada. Em uma semana ficou sem um tostão, sem ter o que comer, com a casa vazia. A culpa então era sua. O fato de não roubar fazia com que uma casa não fosse roubada e assim alguém começou a ficar mais rico e não querer sair para roubar, além disso quem vinha roubar a casa do homem honesto a encontrava vazia e então iam ficando mais pobres. Desta maneira uns iam ficando cada vez mais ricos e outros cada vez mais pobres. Os mais ricos então começaram a pagar os mais pobres para roubar para eles, eram pobres roubando pobres, enquanto isso os cada vez mais ricos iam para cima da ponte para fumar charuto e ver a água passar. Pouco tempo depois naquela cidade não se falava mais de roubos, mas apenas de ricos e de pobres. E, honesto mesmo, só tinha havido aquele sujeito e que logo morreu de fome.
Vivemos um tempo em que as verdadeiras virtudes parecem que mais atrapalham do que ajudam a sociedade, mas não tenho dúvida que, sem elas, todos nós continuaremos cada vez mais pobres.
Que tenhamos o coração agradecido como tão bem cantado na bela música de Violeta Parra e interpretada por Mercedes Sosa, “gracias a la vida que me há dado tanto”.[23] E que assim seja até o dia em que veremos a justiça correndo como as águas de um rio perene. [24]





[1] O verso faz parte da composição popular de Fernando Brandt e Milton Nascimento de 1981. A frase completa é belíssima e pode ser aplicada pertinentemente a um pastor/cuidador da justiça: “Com a roupa encharcada e a alma repleta de chão, todo artista tem de ir aonde o povo está”.

[2] No prólogo do código de Hamurabi existe essa autoapresentação entre outras: “...Quando Merodac me instituiu governador dos homens, para conduzi-los e dirigi-los, eu estabeleci Lei e Justiça para o bem do povo” CLEMENT, R. E. O mundo do antigo Israel: perspectivas sociológicas, antropológicas e políticas. São Paulo: Paulus, 1995, p. 187.

[3] Era preferível ser escravo do que pobre, pobre mesmo. Os relatos de Stegemann apontam para o fato de que alguns escravos gozavam de maior prestígio do que um agricultor pobre, por exemplo, e de que alguns muito pobres invejariam os escravos que tinham, pelo menos, a garantia da alimentação e da vestimenta, mesmo que fossem simples. STEGEMANN, Ekkehard e STEGEMANN, Wolfgang. História social do protocristianismo: os primórdios no judaísmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterrâneo. São Leopoldo, RS: Sinodal; São Paulo: Paulus, 2004, p. 108ss.

[4] Ex 21.2.

[5] “O princípio desta veneração pela vida corresponde ao do amor que a religião e a filosofia descobriram quando procuraram compreender a noção fundamental do Bem. O termo “reverência pela vida” é mais lato, e, por isso mais delicado do que o do amor, mas traz em si as mesmas energias” SCHWEITZER,  Albert. Decadência e regeneração da cultura. 5e. São Paulo: Melhoramentos, 1964.

[6] A preocupação de Van Gogh, por essa época é: “Minha única preocupação é para que poderei valer, a quem poderia ajudar, como me organizaria para ser útil de algum modo”. JASPERS, Karl. Genio Y Locura: Ensaio de análisis patográfico comparativo sobre Strindberg, Van Gogh, Swedenborg y Hölderlin. Madrid: Aguilar. 1961, p. 203.

[7] Palestra proferida pelo pastor Benedito Gomes Bezerra em 23 de novembro de 2008 na cerimônia de posse do pastor Genivaldo Júnior na Igreja Batista em Dois Irmãos, Recife, PE.

[8] STINISSEN, Wilfried. A noite escura em são João da Cruz. São Paulo: Loyola, 1996, p. 13ss.

[9] “À medida que Deus se torna diferente, a sua fé muda também. Você tem a impressão de que a está perdendo. Você não tem mais nada onde apoiá-la, visto que desapareceu o Deus em quem você confiava, em quem você acreditava no passado” Id., p. 23.

[10] Essas cândidas afirmações de Madre Teresa nos impressionam ainda mais pelo contraste de sua vida de dedicação e compromisso em nome de Jesus, como nos testemunha, entre outros, Libânio. “Onde há luta, sofrimento, miséria, catástrofe, lá voa a irmã com suas filhas para levar o consolo, a ajuda, a presença gratuita e libertadora do amor desinteressado” LIBÂNIO, João Batista. Vida religiosa: sempre a renascer. São Paulo: Paulinas, 1995, p. 39.

[11] Um dos modos como o Irmão Roger de Taizé tenta explicar a sua vida é com a idéia de “parábola de comunidade”: “Uma parábola de comunidade se reconhece quando ela fala por si mesma, quando não necessita de explicações para ser compreendida. Era eu muito moço quando tive uma consciência aguda disso, no momento em que esta alternativa se me apresentou: ou bem tornar-me escritor – e camponês ao mesmo tempo – exprimindo-me de preferência com a pena; ou bem estimular a criação duma parábola de comunidade. A opção impôs-se. Possa esta parábola falar por si mesma” IRMÃO ROGER, de Taizé. Os desertos do coração florescem: diário, 5º volume, 1977-1979. São Paulo: Loyola, 1983, p. 37.

[12] Para José Comblin, organizador da coleção “A oração dos pobres” a importância dos relatos de peregrinação vem do fato de que: “O Peregrino russo exprime os traços constantes da devoção russa: o sentido do mistério, a compaixão, a simplicidade do coração, a imitação da vida de Cristo. Nele se encontram a devoção popular e a tradição teológica oriental”. O peregrino russo: três relatos inéditos. 9 e. São Paulo: Paulus, 2005, p. 11.

[13] Os discursos de Martin Luther King Jr são sempre uma chamada a caminhar na direção da justiça e da liberdade sob a égide do amor. Uma espécie de peregrinação aos valores mais decantados da sociedade americana, como no seguinte pronunciamento: “Viemos também a este glorioso local para lembrar a América da urgência feroz do momento. Não é hora de se comprometer com o luxo do comedimento ou de tomar o tranqüilizante do gradualismo. Agora é hora de concretizar as promessas da democracia (Sim, Senhor). Agora é hora de deixar o vale sombrio e desolado da segregação pelo caminho ensolarado da justiça racial. Agora é hora de conduzir a nossa nação da areia movediça da injustiça racial para a sólida rocha da fraternidade. Agora é hora de tornar a justiça uma realidade para todos os filhos de Deus”. KING, Martin Luther. Um apelo à consciência: os melhores discursos de Martin Luther King. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, p. 73.

[14] Roberto Diamanso, cantor e compositor de músicas cristãs comprometidas com temas e ritmos populares, põe poesia e música na canção chamada “Patativa” que faz parte do CD “Menestrel”.

[15] Esta canção, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, foi lançada no ano de 1950.

[16] “Para resumir uma longa história: a nova plenitude do planeta significa, essencialmente, uma crise aguda da indústria de remoção do refugo humano. Enquanto a produção de refugo humano prossegue inquebrantável e atinge novos ápices, o planeta passa rapidamente a precisar de locais de despejo e de ferramentas para a reciclagem do lixo”. BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p.13.

[17] SUNG, Jung Mo, Experiência de Deus: ilusão ou realidade? São Paulo: FTD, 1991, p. 29.

[18] “E a maneira de conseguir isso que de outra forma as pessoas não aceitariam, é assustá-las. Se as pessoas tiverem receio de que sua segurança está ameaçada, gravitarão em direção aos líderes fortes. Terão confiança em que os republicanos os protegerão dos inimigos e por isso reprimirão suas próprias preocupações e interesses. Assim, os republicanos poderão avançar sua agenda doméstica, talvez até mesmo institucionalizá-la, dificultando sua reversão. Portanto, primeiro assustam as pessoas e em seguida apresentam o presidente como um poderoso líder em tempo de guerra que está conseguindo vencer esse inimigo temível – inimigo que foi escolhido precisamente porque era capaz de ser esmagado com rapidez”. CHOMSKY, Noam. Ambições imperiais: o mundo pós 11/9 em entrevistas a David Barsamian. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006, p. 31.

[19] “Na sociedade de consumidores, ninguém pode se tornar sujeito sem primeiro virar mercadoria, e ninguém pode manter segura sua subjetividade sem reanimar, ressuscitar e recarregar de maneira perpétua as capacidades esperadas e exigidas de uma mercadoria vendável”. BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 20.

[20] COMBLIN José. A liberdade cristã. Vozes: Petrópolis, 1977, p.51

[21] Id. p.112.

[22] CALVINO, Ítalo. Um general na biblioteca. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

[23] Essa canção da esplêndida folclorista, artista plástica, cantora e compositora chilena Violeta Parra (1917-1967) tem sido usada em diversos contextos como um hino de afirmação à vida mesmo em situações de ditadura, violência e morte.

[24] Am 5,24.

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